Liberdade de prescrição e responsabilidade médica: quando a liberdade se converte em responsabilidade?
Recentemente, noticiou-se1 que médicos que atuam na linha de frente da Covid-19 constataram empiricamente a ocorrência de intoxicação de pacientes por excesso medicamentoso, provocada pela administração do chamado kit Covid, cujos efeitos mais graves aos usuários são lesões no fígado e sobrecarga da função renal, principalmente em pessoas com doenças preexistentes ou predisposição para essas lesões. Os mencionados profissionais também referiram que a contaminação, pelo coronavírus, dos pacientes cujo organismo tenha sido previamente castigado por excesso medicamentoso, poderia ensejar agravamento do estado clínico, com elevação dos riscos de entubação e de letalidade.2 Não bastasse isso, a imprensa difundiu a morte de pacientes após nebulizarem hidroxicloroquina, atendendo a indicação médica3.
O uso de cloroquina e de hidroxicloroquina foi objeto de manifestação por parte do Conselho Federal de Medicina, no Processo-Consulta n. 8/2020 – Parecer n. 4/20204, o qual propôs considerar a sua administração, a critério do médico, em indivíduos com sintomas leves no início do quadro clínico ou naqueles com “sintomas importantes, mas ainda não com necessidade de cuidados intensivos”, “em decisão compartilhada com o paciente”, mediante consentimento livre e esclarecido ou autorização dos familiares, conforme o caso.
Embora se trate de um parecer e não de uma resolução, essa manifestação do CFM foi interpretada como uma espécie de imunidade concedida a médicos prescritores, quanto à possibilidade de serem acusados de infração ética perante o referido órgão. Porém, a opinião daquele órgão não é decisiva para o fim de afastar eventual responsabilização penal ou civil.
Ademais, tal manifestação foi emanada à luz do conhecimento científico então existente, levando também em consideração as incertezas daquele período. Tanto que a Associação Médica brasileira – AMB, em julho de 2020, afirmou que os médicos deveriam ter autonomia para receitar medicamentos, e, em março de 2021, passou a não recomendar o uso de remédios sem eficácia comprovada para tratar a Covid-195. Isso ocorreu porque estudos posteriores demonstraram que a cloroquina não traz benefícios e que o tratamento com hidroxicloroquina está associado ao aumento da mortalidade de pacientes com Covid-196.
A questão que se coloca – e que certamente será discutida em processos judiciais no futuro próximo – diz respeito a responsabilidade do médico que prescrever esses medicamentos e vier a ser constatado que não só foram ineficazes para a prevenção da doença ou para a sua menor virulência, como ainda acarretaram danos colaterais importantes aos usuários.
Para tratar dessa responsabilidade, devem ser apontadas algumas premissas quanto ao que será objetivamente exposto e defendido nesse texto:
1º. O médico tem o dever de exercer a sua profissão “dentro de parâmetros reconhecidos e estabelecidos pela lex artis”7. Em geral, não há obrigação de cura, mas de cuidado adequado segundo as boas práticas8, além do dever de informar e esclarecer.9
2º. O médico deve estar atualizado quanto ao conhecimento científico que envolve a sua especialidade10 (princípios fundamentais V e XIX do Cap. I do Código de Ética Médica-CFM) considerada a época da prescrição e, se não puder acompanhar o que há em outras especialidades para as quais possa prestar atendimento, poderá recusá-lo, se houver disponibilidade por parte de outros profissionais da área na mesma localidade.
3º. Não é considerado válido o consentimento do paciente quanto a atos profissionais que não constituam boas práticas11, inclusive as não respaldadas cientificamente.
4º. Ao início da pandemia, quando o vírus e a doença eram desconhecidos, permitia-se que médicos tentassem, via prescrição off-label, atenuar ou suplantar a doença. Atualmente, existem estudos que indicam com maior precisão o que é admissível e o que não é, em matéria de prescrição para Covid-19, inclusive considerando as diferentes fases da doença e o estado clínico do paciente.
5º. Tentativas de uso off-label de alguns medicamentos ao início da pandemia foram não só toleradas, mas incentivadas por órgãos de controle sanitário em todo o mundo, o que ainda persiste quanto a certos medicamentos, como os anticoagulantes, os anti-inflamatórios e os antibióticos.12 Algumas dessas tentativas envolveram os remédios componentes do kit-covid e, como visto, tiveram sua eficácia descartada em posteriores estudos científicos publicados em periódicos qualificados13.
Assim, o médico: (1) sem haver estudos, pode realizar prescrição off-label em casos extraordinários que demandem intervenção (situação presente ao início da pandemia), desde que seja cientificamente aceitável segundo o conhecimento científico existente ao tempo da prescrição; (2) a partir do maior conhecimento a respeito da doença e do seu tratamento, o médico poderá estar sujeito a responsabilidade civil se agir sem respaldo científico, inclusive se realizar ou determinar a execução de prática indevida.14
Quanto a esse ponto, não mais é admitido o tratamento experimental sob uma indevida roupagem de prescrição off-label. Nesse contexto, a Resolução CFM n. 2.292/2021, publicada em 13/05/2021, classificou como procedimento experimental a “administração de hidroxicloroquina e cloroquina em apresentação inalatória”, a qual somente pode ser implementada “por meio de protocolos de pesquisa aprovados pelo sistema CEP/CONEP”15.
Desse modo, a salutar liberdade de atuação médica depende do necessário ancoradouro na ciência, ou seja, na medicina da evidência, bem como dos ditames regulamentares pertinentes. Após as pesquisas de acompanhamento atestarem a ineficácia de determinados tratamentos, a atuação médica deixa de ter respaldo científico e, portanto, a insistência em prescrever remédios não eficazes e com potenciais efeitos colaterais sérios, poderá acarretar a responsabilidade médica e, no caso de atendimento público, ensejar a responsabilidade civil do próprio Estado, considerando-se o teor do Tema n. 940 do STF16.
Depois da conclusão de estudos de acompanhamento de milhares de pacientes tratados com essas alternativas terapêuticas, em diversos lugares do mundo, com publicação das pesquisas em respeitadas revistas científicas, não há mais espaço para que o médico possa entender que “talvez funcione”. Se o esculápio insistir nesse tratamento e se o paciente vier a sofrer efeitos colaterais, poderão estar presentes os requisitos da responsabilidade civil médica: uma conduta do médico prescrevendo remédios, sua ineficácia comprovada, a superveniência de danos à saúde do seu paciente e um nexo de causalidade entre a ingestão medicamentosa e os danos sofridos.
Os médicos que insistem em tais tratamentos, invocando sua experiência clínica, no sentido de terem assim agido e colhido bons resultados, confundem correlação com causalidade. De fato, boa parte dos contaminados pelo coronavírus desenvolve sintomas leves ou é assintomática. Pelos dados divulgados, um grupo de aproximadamente 20% desenvolve sintomas mais sérios17. Deste, uma parte menor ainda necessita de internação e um pequeno percentual, de entubação. Lamentavelmente, dos pacientes entubados, substancial maioria acaba falecendo. Isso é estatisticamente verificável, independentemente do que cada um deles vier a tomar18.
Para usar um exemplo de mais fácil assimilação, se 100 contaminados pelo coronavírus tiverem o hábito de tomar chá de carqueja duas vezes por dia e 80 deles passarem incólumes, sem efeitos sérios, haveria uma mera ‘correlação’ entre tomar tal chá e o efeito de passar incólume. Não foi ‘por causa’ do chá que tiveram bom resultado, pois isso ocorreria de qualquer forma.
A verdadeira causalidade científica só pode ser aferida por estudos científicos sujeitos a cânones metodológicos reconhecidos, tais como a existência de grupo de controle, sistema do “duplo cego”, em que nem os pacientes, nem os responsáveis pelo estudo clínico, sabem quem tomou o medicamento em teste ou o placebo, para não se sugestionarem. A reidentificação só é feita ao final do estudo.
Por fim, meta-análises são realizadas, tendo como base a reunião e profunda aferição dos vários estudos efetuados em distintos centros clínicos do mundo, para checagem do rigor metodológico das pesquisas e para a extração de conclusões universalmente válidas. Submetidas à revisão duplamente cega por pares, normalmente cientistas especializados e prestigiados, os estudos são finalmente publicados nas mais prestigiadas revistas cientifícas, como a The Lancet e a New England Journal of Medicine.
Assim, a causalidade só pode ser aferida por meio desses estudos científicos, de alto rigor metodológico, com conclusões idênticas alcançadas em vários centros de pesquisa, pois a simples constatação de aparente resultado positivo no uso de medicamentos off-label equivale a uma correlação, não a um juízo de causalidade científica.
De outro lado, nem sempre será juridicamente eficaz a justificativa médica de consentimento do usuário, mediante prévia informação sobre potenciais benefícios e riscos associados ao remédio objeto da prescrição. Isso porque, em momento de pânico e histeria (justificável) emergente da pandemia, além da larga disseminação de fake news, de informações contraditórias e de afirmações atécnicas oriundas de pronunciamentos estatais, o médico não tem apenas o direito de autodeterminação técnica na atividade de prescrição, ele tem sobretudo o dever de cumprir o princípio bioético primum non nocere. Aliado ao princípio jurídico da boa-fé, impõe-se ao profissional o cuidado de não prescrever ao paciente, que se encontra vulnerável pela doença, algo que, além de não lhe beneficiar, poderá prejudicá-lo.
O paciente deposita a sua confiança no esculápio, no sentido de que será atendido de modo tecnicamente adequado. Metaforicamente, o médico deve vestir um “manto de eticidade” ao exercer a sua profissão, pois o direito protege a legítima expectativa do paciente de “receber o melhor tratamento possível à luz da ciência contemporânea” e, ao aplicar método experimental, o referido profissional “deverá arcar com os riscos do procedimento, isto é, sua conduta poderá ser mais severamente analisada”.19
É sabido que a lei 13.979/2020, autorizou medidas excepcionais para o enfrentamento da emergência de saúde pública, dentre as quais a possibilidade prescrição, pelo médico, de medicamentos ainda não aprovados pela Anvisa. Prevê, porém, no §7º-B, do art. 3º, que “o médico que prescrever ou ministrar medicamento cuja importação ou distribuição tenha sido autorizada na forma do inciso VIII do caput deste artigo deverá informar ao paciente ou ao seu representante legal que o produto ainda não tem registro na Anvisa e foi liberado por ter sido registrado por autoridade sanitária estrangeira” (dispositivo incluído pela lei 14.006/2020). No entanto, no §1º desse mesmo art. 3º, ressalta que tais medidas “somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública”.20
Destarte, a análise de eventual responsabilidade médica por prescrição off-label de medicamentos que tenha causado efeitos colaterais danosos aos pacientes no contexto da pandemia, deverá ser analisada à luz da época em que a prescrição se deu. No período inicial, de dúvidas e incertezas, tal prescrição era aceitável, na desesperada tentativa de enfrentar eficazmente a doença.
Todavia, após a ampla divulgação dos estudos que não convalidaram tal esperança e, ao contrário, apontaram para a ineficácia de certos tratamentos, o médico que insistir na prescrição poderá vir a ser civilmente responsável por danos causados que sejam causados ao paciente. Ressalva-se, porém, ser permitido ao médico justificar a sua opção, à luz das peculiaridades da situação do seu paciente, do conhecimento científico disponível e das circunstâncias que envolveram o atendimento, tudo a ser avaliado casuisticamente.
O encerramento deste texto contempla um retorno ao seu título: a liberdade de prescrição do médico está circundada pelas boas práticas, pelos princípios de ética médica, além das determinações legais pertinentes, mas será convertida em responsabilidade caso prejudique indevidamente o paciente.
1 Disponível aqui.
2 Esse kit é composto por cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina, e foi recomendado pelo Ministério da Saúde para uso nas fases leve e moderada da doença, notadamente por meio do aplicativo (atualmente inoperante) TrateCov, bem como da Nota Informativa n. 17/2020 SE/GAB/SE/MS. Segundo a reportagem, o aplicativo referido também indicava o uso de Ivermectina, Dexametasona, Doxiciclina e Zinco.
3 Disponível aqui.
4 Disponível aqui. Quanto a sua inadequação formal, vide DADALTO e MASCARENHAS.
5 Disponível aqui. Nessa mesma linha: BMJ 2021;372:n858. Aqui.
6 Por exemplo: Axfors, Cathrine, Schmitt, Andreas M., Janiaud, P. et al. Mortality outcomes with hydroxychloroquine and chloroquine in COVID-19 from an international collaborative meta-analysis of randomized trials. Nat. Commun. 12, 2349 (2021). Aqui.
7 DANTAS, Eduardo. Direito médico. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 182.
8 KFOURI NETO, Miguel; DANTAS, Eduardo; NOGAROLI, Rafaella. Medidas extraordinárias para tempos excepcionais: da necessidade de um olhar diferenciado sobre a responsabilidade civil dos médicos na linha de frente do combate à COVID-19. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (Coord.). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 512.
9 O critério para informar é, em uma primeira etapa, o do paciente em abstrato e na etapa subsequente a adaptação considerando o paciente em concreto. FACCHINI NETO, Eugênio. Consentimento e dissentimento informado – limites e questões polêmicas. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Editora RT. Vol. 102. p. 223-256. Nov./Dez./2015.
10 “(.) a desatualização do profissional pode, eventualmente, ensejar responsabilidade civil, se causar dano.” ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Responsabilidade civil na área médica. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César (org.). Direito privado e contemporaneidade. Desafios e perspectivas do direito privado no século XXI. Vol. 3. Indaiatuba: Foco, p. 27.
11 SOARES, Flaviana R. Consentimento do paciente no direito médico: validade, interpretação e responsabilidade. Indaiatuba: Editora Foco, 2021. p. 226.
12 SOARES, Flaviana R.; DADALTO, Luciana. Responsabilidade médica e prescrição off-label de medicamentos no tratamento da COVID-19. Revista IBERC, v. 3, n. 2, p. 1-22, 26 jun. 2020.
13 O médico infectologista Esper Kallás, professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da USP declara: “cloroquina, a hidroxicloroquina e a azitromicina não mostraram efeito benéfico no tratamento da doença. E não dispomos sequer de um único estudo convincente sobre a eficácia antiviral da ivermectina.”
14 Se o médico prescrever generalizadamente um medicamento ou tratamento não aprovado ou indicado para tratamento da COVID para um conjunto de pacientes, conforme as circunstâncias, sua conduta poderá ser vista como pesquisa clínica irregular, diante do não atendimento de protocolos específicos que regem a matéria. Sobre o tema: CEZAR, Denise Oliveira. Pesquisa com medicamentos: aspectos bioéticos. São Paulo: Saraiva, 2012; PEREIRA, Paula Francesconi de Lemos. Responsabilidade civil nos ensaios clínicos. Indaiatuba: Foco, 2019 e DALLARI, Analluza. Contrato de pesquisa clínica. São Paulo: RT, 2019.
15 Disponível aqui. Os medicamentos Remdesivir e Regn-CoV2, além dos anticorpos monoclonais banlanivimabe e etesevimabe estão aprovados para uso emergencial pelo Ministério da Saúde.
16 STF. Tema 940. “A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”
17 Disponível aqui.
18 Segundo pesquisa, 16% dos falecimentos no Brasil são creditados à Covid-19 (causa básica), em taxa de mortalidade de 119,9 por 100 mil habitantes. SANCHEZ, Mauro, et al. Mortality from Covid-19 in Brazil: analysis of death’s civil registry from 2020 January to 2021 February. Aqui.
19 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe P. Responsabilidade civil na área médica. cit. p. 26 e 37.
20 FACCHINI NETO, Eugênio. Responsabilidade médica em tempos de pandemia: precisamos de novas normas? Revista IBERC, v. 3, n. 2, p. 93-124, maio/ago. 2020, p. 113/114.